língua portuguesa ou brasileira?

Afinal, falamos brasileiro ou português em Portugal?

23/11/2021

Eu sempre digo aos amigos: se quiser comer uma boa comida tradicional de um país, vá para outro país que tenha imigrantes, entre num restaurante e peça o prato típico. Não parece ter nada a ver com a língua portuguesa que vamos discutir? Mas tem. A frase aplica-se bem ao que vou escrever mais à frente.

Li recentemente uma matéria do Diário de Notícias (DN) intitulada “Há crianças portuguesas que só falam ‘brasileiro'”, narrando, quase em forma de acusação, que uma grande quantidade de crianças portuguesas falam “brasileiro”. Nos dois anos em que estive a morar em Portugal, observei que uma grande quantidade de crianças consomem uma enorme quantidade de youtubers brasileiros, como Felipe Netto, por exemplo, mas há outros, e que durante a pandemia, presos em casa, sem ter o que fazer, esse consumo se tornou ainda mais intenso.

Culpa de quem, então? Dos youtuberes brasileiros que são sucesso entre as crianças portuguesas, ou dos portugueses que não têm competição à altura? Talvez nem uma coisa nem outra. Na verdade, a discussão é sobre a língua portuguesa e não sobre os youtubers, ou seria “youtuberes”? Assim manda o bom português. Ninguém reclama se as crianças assistirem a muitas séries espanholas ou a filmes franceses e adquirirem uma ou duas palavras. O problema é que o português falado pelos brasileiros pega muito facilmente.

Na reportagem do DN, alguns pais relatam o desconforto de ter os filhos a falar palavras que foram trazidas do Brasil como: geladeira, gramado, ônibus, risco e bala, só para dar um pequeno exemplo. 

Se bem se recordam, em 2009 foi criado o Novo Acordo Ortográfico que pretendia unificar as línguas faladas e escritas nos países que usam o português. E talvez tenha sido uma enorme ingenuidade ignorar que nações com anos de hábitos e desenvolvimento linguístico, de uma hora para outra, simplesmente passariam a usar um só vocabulário! São muitos os obstáculos, e as diferenças quase intransponíveis. Independentemente do Acordo Ortográfico, outros elementos iriam trazer esse problema à tona: a universalização das comunicações, a imigração, etc. Afinal, não vamos esquecer que da mesma forma os brasileiros acabam adquirindo, em Portugal, hábitos de vocabulário. Mas talvez o que incomode os portugueses é a maior influência vinda do Brasil e não o contrário.

O “brasileiro” na escola

Professores, alguns pelo menos, chegam a reduzir notas de trabalhos de alunos por usaram o “portugês inapropriado”, o tal “brasileiro”. No caso dos brasileiro imigrantes isso é uma discriminação que acontece por não se adequarem ao vocabulário local. Para os adultos isso não chega a ser um problema. Adultos conseguem lidar com condições adversas, mas as crianças sofrem, pois são tratadas como inferiores. Crianças são esponjas e absorvem tudo com muita rapidez. O consumo de meios de comunicação brasileiros – novelas, programas, internet, etc. O advento já é conhecido como “variante brasileira”. 

Segundo a matéria, esse preconceito não faz parte da política de acolhimento e incentivo à interculturalidade de Portugal. Segundo João Costa, Secretário de Estado da Educação de Portugal, os documentos orientadores para o ensino da língua portuguesa “preveem o domínio do português europeu padrão, integrando também a consciência da diversidade de registros e de características das variantes faladas pelo mundo”

Agora sim, os pratos tradicionais

Há quem acredite que o português falado no Brasil é que perdeu as suas origens e ficou tão diferente. Em nenhum lugar do mundo o português é igual ao usado em Portugal. O problema é o “brasileiro”. Porém uma outra opinião vem de estudiosos linguistas, que os portugueses transmitiram aos nativos a língua falada em Portugal. Eles também constataram que diversos documentos da época tinham uma tendência para o português brasileiro. Calma! Era o português falado em Portugal, na época. Então o que aconteceu? Simples: foi o português de Portugal que se afastou de suas origens. Mudou ao longo dos séculos, se desenvolvendo a ponto de ele perder, as suas características, enquanto no Brasil, o português sofreu alterações muito pequenas. 

Por isso sempre digo: se quiser experimentar uma comida tradicional de um país, viaje e vá para longe dele. Nas colónias, onde as receitas são mantidas com parte das tradições das famílias e nunca mudam uma pitada sequer. No entanto, nos países de origem, vão mudando e se tornando modernas a ponto de até desaparecerem. 

Pesquisadores da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, analisam essas diferenças desde 1980. Assistam ao vídeo que mostra um pouco desse trabalho.

O mesmo das comidas tradicionais acontece com a língua. Claro que os vocabulários mudam no mundo todo. O termo “giro” ou “porreiro” para demonstrar coisa boa, interessante ou bonita tem quantos anos em Portugal? Muitos não percebem que a língua é dinâmica e vai mudar o tempo todo, não havendo Acordo Ortográfico que resolva.

Mas temos as provas

Uma profunda análise de documentos mostrou que em Os Lusíadas, a estrutura linguística é muito mais semelhante à usada no português brasileiro do que o de Portugal hoje. São diversas estruturas de gerúndio, mas nenhuma como a do português atual. Um exemplo é o gerúndio brasileiro (estou andando) comparado com o português (estou a andar). 

Assim podemos concluir que o preconceito contra o português do Brasil não cabe, pois nenhuma das duas línguas estão corretas ou erradas. É como proibir que palavras vindas de países africanos de língua portuguesa entrem nas discussões e na escrita.

O que a matéria do DN não coloca é que o mundo globalizou e a interferência das línguas e costumes é definitiva. A miscigenação, as regras sociais, os alimentos, as vestimentas e outras tantas atitudes vieram para ficar e não há como lutar contra. É o mesmo que impedir o seu filho de lutar judo porque do contrário ele terá influências japonesas indesejáveis. Ele terá, e isso fará parte da experiência de vida.

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