15/06/2020
“A humanidade se divide em duas: os senhores e os escravos; aqueles que tem direito de mando e os que nasceram para obedecer”
Aristóteles, filósofo grego
Não é de hoje que a humanidade sofre de momentos de humor extremo. Passamos por várias situações, em diversas partes do mundo, em geral isoladamente, mas agora estamos diante de uma versão global iniciada devido à morte de George Floyd, um cidadão norte americano, negro, que foi sufocado até a morte por um policial, às vistas de câmeras para que todo o mundo visse, mas nada mudou o desfecho dramático e triste de seu destino.
George Floyd estava morto e muito antes de ser sepultado, começou uma onda de protestos que tomou conta dos Estados Unidos. Os protestos tiveram início em Minneapolis, onde havia sido assassinado, e como um rastilho de pólvora, se espalhou por todo o mundo, atravessando todas as fronteiras, mesmo as continentais. Tudo muito justo, muito cívico, até bonito de se ver. Um movimento forte e autêntico que dá gosto de se ver, de vez em quando. De repente um novo jeito de protestar apareceu, esse não tão nobre: estátuas de celebridades começaram a ser derrubadas ou demolidas. O vandalismo não perdoou nenhuma que representasse alguém que defendesse a escravatura em algum momento da história.
A arte e a ignorância
Somos talvez um pouco jovens para nos lembrarmos, mas não precisamos ir muito longe. Vocês lembram-se quando, em 2001, o Taliban, um movimento islâmico extremista, ignorou as pressões internacionais para proteger a rica herança cultural do Afeganistão e destruiu duas estátuas de Buda, encravada no paredão de uma montanha, de valor incalculável para a humanidade, simplesmente porque imagens esculpidas significam uma ofensa ao Islão.

Os monumentos, e nesse caso incluo as tão odiadas estátuas, são parte da nossa história contada ao longo do tempo. Os monumentos representam o que aconteceu connosco, de bom ou de mau, e não deveriam ser vítimas de vandalismo. Não tenho outro nome para dar senão vandalismo. Nem tanto porque seja a favor das estátuas, mas porque já que existem, fazem parte de nossa cultura. Infelizmente não aprendemos a homenagear pessoas de outra forma e acabamos por construir estátuas. Mesmo as mais desgraçadas misérias são homenageadas com algum monumento. Temos monumento para a segunda grande guerra, para a primeira, para as derrotas e para as vitórias. Depois temos as estátuas.
Todas, mesmo as menos belas, são arte. Como arte, são a representação de um momento e deveriam ser mantidas, não como uma homenagem, mas como uma memória.
O desmonte de monumentos no mundo não é uma novidade de agora. Já há muito tempo que monumentos são vítimas do ódio momentâneo. Depois de algum tempo as pessoas concluem que ficaram sem um pedaço de suas histórias.
Na Síria, quatro monumentos foram destruídos pelo estado islâmico:

Khorsabad, a vila foi a capital da Assíria, Dur-Sharrukin, onde está o palácio de Sargon, foi saqueada e demolida por volta de 2015. Dizem que membros da organização também venderam itens no mercado negro.
Nimrud, foi a segunda capital da Assíria. A cidade, próxima ao rio Tigre, foi estabelecida em 900 a.C.
Crac des Chevaliers, também listado como património da humanidade pela UNESCO, foi construído em 1142 e era considerado um dos castelos da época das cruzadas melhor preservados.

Hatra, a cidade próxima a Baghdad, servia como um centro de trocas durante o Império Parta. Era listada pela UNESCO como património da humanidade e considerada a cidade melhor preservada do período. Suas ruínas teriam sido destruídas por militantes do Estado Islâmico no dia 7 de março de 2015.
A história é suja e não deve ser apagada, pois acabará esquecida.
São milhares de monumentos destruídos por ideologias. Imagine então, se por alguma razão se descobrisse agora que os templários tinham escravos? Quantos castelos teríamos para visitar na Europa? Como interpretar o que numa época era normal? A escravatura, foi iniciada muito anteriormente aos africanos. Está certo que eles foram numericamente muito mais, porém não foram os únicos. A própria palavra escravo vem de “eslavo”, aquele povo clarinho do norte da Europa. Isso mesmo! Eles não eram negros, nem africanos. Muito antes de Jesus Cristo, a escravatura já era praticada em larga escala. Pais entregavam seus filhos para serviços escravos, fosse para pagar uma dívida ou para que ele mesmo não fosse escravizado. Mais adiante, nesse texto veremos quem mais surpreenderia. Por enquanto, apenas imagine como seria o mundo hoje se todos começassem a cobrar suas dívidas históricas usando os monumentos para isso.
A ignorância vai além dos monumentos

e depois lhe descobriram a cabeça
Para alguns, grandes personagens da história são heróis e outros são verdadeiros demónios. Mas cuidado, tem demónios no meio desses santos! Uma vez estabelecido o herói, ele é protegido e as verdades são escondidas até que uma grande desilusão tome conta. Vamos ver nessa matéria, alguns poucos casos, que nem sequer são segredos, são apenas esquecidos. Mas antes podemos já ficar a saber que será uma desilusão para os mais desavisados, ao descobrir que desde os papas católicos, aos grandes personagens de nosso tempos, a maioria teria suas estátuas derrubadas se por acaso houver alguma. Sem contar os detalhes, seriam dignos de nossa revolta Ghandi, Thomas Jefferson, Zumbi dos Palmares, D. Henrique de Portugal e a lista se alarga por quilómetros. Mas temos de lembrar que, os tempos mudam e essas pessoas não sabiam que seriam, no futuro, tratadas como marginais pela sociedade. Eles estavam ocupados descobrindo e resolvendo o mundo, a seu jeito.
Pense em como é normal para um árabe forçar o casamento de uma filha, como era normal a mulher obedecer seu marido na década de 40. Lembre de quando você agradecia a professora por castigar seu filho e hoje você a processaria. Tudo que hoje é estranho para você, um dia foi normal e louvável.
Queens

A rainha portuguesa Catarina de Bragança, aquela que levou a obsessão do chá para os ingleses e que inspirou o nome do bairro nova iorquino de Queens, teve o projeto de sua estátua desaprovado porque, sendo ela uma monarca dos britânicos que estavam ligados ao tráfico de escravos. Pronto. Não merecia mais a homenagem, mesmo se argumentando que não era ela uma monarca escravagista, mas nesse caso, o regime era e isso bastou.
O projeto da escultora americana Audrey Flack foi colocado de lado e a única lembrança do trabalho está em Lisboa. Mais um monumento vítima das verdades descobertas tardiamente.
Os heróis que talvez não fossem

Toda história tem duas faces. Algumas faces nunca são conhecidas e outras se preferem não ver. Os argumentos usados para se destruir estátuas, principalmente agora, nessa fase em que se protestam contra ativistas escravagistas, são o tráfico e seus personagens. Recentemente o livro do brasileiro Laurentino Gomes, Escravidão, mostra com todos os documentos que D. Henrique, foi o responsável pelo primeiro leilão de escravos africanos em Portugal, em 1444. Ele e os seus herdeiros, foram os maiores empresários no empreendimento escravista de seu tempo. Zumbi dos palmares, o escravo brasileiro, herói dos afrodescendentes no Brasil e outros países, tinha uma legião de escravos para seu deleite, para diversos usos. A escravidão para as américas foi enormemente facilitada pelos próprios africanos, que se incubiam de capturar, organizar e vender o “produto”.
Se fossemos vingar-nos da história demolindo estátuas e monumentos, talvez não tivéssemos mais uma igreja. Sim, porque também os padres, nesse caso nas américas, também tinham escravos. Padres sem escravos não eram bem conceituados.

A igreja católica, durante muito tempo não se pronunciou contra a escravatura. Foi ela, juntamente com o oficial português Gil Eanes, que ajudaram na tarefa de coletar africanos para iniciar o negócio escravista. O mesmo ocorria com os “infiéis”, aqueles que não fossem católicos e os sarracenos, considerados raça inferior naquele tempo, e portanto elegíveis para serem escravos.
Na verdade a escravidão do negro africano não passava de um negócio altamente lucrativo, mas a escravidão sempre foi, e em alguns lugares ainda é um hábito, que se mantém na surdina de uma humanidade ainda em início de seu desenvolvimento.
Se serve a opinião
Não sou contra os protestos e acho que deveriam expandir-se para muito mais longe de tal forma que provoque mudanças reais e irreversíveis, mas, no meu ponto de vista, não são as estátuas as culpadas, são os tempos e seus hábitos que proporcionam esses erros. Não devemos destruir a história, pois ela deve ser contada, e deve ser contada não como conhecemos nos livros de história da escola, pois esses são tendenciosos e mostram o que interessa no momento em que a história acontece. A história deveria ser contada por historiadores, aqueles estudiosos que têm acesso à verdade documental, que aos Governos não interessa fazer conhecer. Devemos sim, trocar as placas que contam a história de cada monumento e dizer nelas o que aquele símbolo representa, e não valorizar os momentos que na verdade nunca existiram.
Além dos escravos poderíamos protestar contra a violência e seus personagens, a ignorância, a sujeira na política, as injustiças, a falta de saúde e ensino, mas para isso teríamos de nos controlar para não demolir todos os prédios públicos.
Para finalizar, uma citação de George Orwell, no seu livro 1984, que se aplica perfeitamente ao momento:
“Todos os registros foram destruídos ou falsificados, todos os livros foram reescritos, todos os quadros foram repintados, todas as estátuas, todas as ruas, todos os edifícios renomeados, todas as datas foram alteradas. E o processo continua dia a dia, minuto a minuto. A história se interrompeu. Nada existe além de um presente interminável no qual o Partido tem sempre a razão.”