
A volta à normalidade
10/04/2020
Faz algumas semanas que não ouvimos falar ou lemos sobre outra coisa. Estamos a tornar-nos especialistas em pandemias e COVID-19. Só se fala em coronavírus. Conhecemos em detalhe todas as suas características. Ao dar bom dia para alguém, já conseguimos saber o potencial de infeção dessa pessoa. Já olho desconfiado para o meu vizinho. Alguns já não vejo há mais de um mês, mas uma hora destas voltaremos à normalidade.
Voltaremos mesmo? Seremos normais? De repente, seremos os mesmos que antes? Espero honestamente que não. Espero mesmo que mudemos e muito. Espero que voltemos mais atentos ao nosso mundinho e suas consequências do que não soubemos durante a pandemia desse vírus.
Certo. Vamos aos factos, ou ao que poderão ser factos daqui para frente. Baseando-se nas crises passadas, por causa de doenças pandêmicas, sabemos que a crise financeira vem no rastro da crise de saúde. Afetará diversas áreas da economia e dos mercados e o cenário económico como conhecemos, não será mais o mesmo. Provavelmente nunca mais será. O valor do dinheiro será afetado e a base do trabalho como conhecemos também irá sofrer. Naturalmente, muitos se aproveitarão da crise. São os que tem mais poder de barganha, os grandes empresários, que podem manejar suas produções de acordo com as dificuldades momentâneas de uma região. Os seus lucros vão ser abalados, mas suas finanças vão recuperar muito rapidamente. Eles podem levar suas fábricas para outros países ou mesmo outros continentes, menos afetados.
Para nós mortais, as coisas vão ser mais difíceis. Dependeremos de toda a força que tivermos. Sairemos da crise, é claro, mas teremos um futuro complicado pela frente, pois ainda teremos contas a pagar, algumas mensais e que nunca perdoam. Vamos ter que sacrificar alguns prazeres, mas vamos sair da crise. Ouviremos com frequência que algum parente perdeu seu emprego. Nossos filhos, aqueles que tiverem condições, mais uma vez vão procurar o estrangeiro para recuperar as perdas.
No âmbito dos costumes, talvez comecemos a mudar alguma coisa. Apesar de latinos e sempre afetuosos, abraçaremos menos ou vamos levar um tempo para deixar o medo de lado. Não chegaremos a ser japoneses, mas passaremos por perto disso.
De alguma forma, teremos mais medo de lugares fechados. Quem sabe se isso não fará com que os portugueses abram mais suas janelas, sempre tão fechadas. Possivelmente os comércios mostrarão mais eficiência na sua limpeza.
Do ponto de vista económico, teremos tempos complicados. Preços cairão, mas isso não será uma boa notícia. Cairão pelos motivos errados. Não haverá quem compre. As pessoas vão controlar mais o que consomem, sejam produtos eletrônicos, vestuário ou alimentação. Possivelmente vão cortar algumas viagens de seus planos.

Nessa cadeia, ninguém estará a ganhar. Só nos resta torcer para que no momento da recuperação, todos estejam juntos admirando os esforços positivos que todos fizeram. Tomara que ao olhar para trás haja alguma lição aprendida de tudo isso.
Diversas áreas terão de se adaptar e terão que fazer isso muito rapidamente, pois daqui para frente o tempo será precioso e não pode haver atraso. Uma área que vai sentir o golpe é a imobiliária. Os preços vão cair, mas isso também não significará vantagem. Quer dizer que não haverá quem compre ou arrende. Inquilinos não poderão pagar e proprietários não terão como arrendar ou mesmo vender. Não haverá dinheiro fácil para os booms imobiliários, e por um bom tempo.
Empresas vão ficar sem empregados e alguma mão de obra especializada será perdida para sempre. Todo o investimento em desenvolvimento, será jogado fora. Muita coisa deverá começar do zero.
Para alguns a luz no fim do túnel está próxima, mas isso é certo do ponto de vista do vírus. Ele estará sob controle em algum tempo, mas a economia vai levar muito tempo. Nós de facto voltaremos à chamada normalidade, mas não será de forma nenhuma o normal que hoje conhecemos. Será uma normalidade mais parecida com um pós guerra. Todos reconstruindo alguma coisa. Famílias reconstruindo vidas e lamentando seus parentes perdidos para o vírus, profissionais procurando novos patrões, pois os anteriores estarão a procurar outros empregados.

Tem algo que esses novos tempos estão a ensinar-nos. Temos humanidade afinal. A bondade individual ou coletiva está a brotar de onde não se imaginava antes. Temos testemunhado empresas e pessoas comuns, que lidam com comida, confeção, saúde, engenharia e todos os outros talentos, a ceder seus produtos e suas horas para tantos que estão a precisar de suporte. Muitas delas sem se preocupar com a própria segurança. Basta-lhes ajudar e pronto. Poucos foram os logótipos e marcas que vimos nesses momentos. Essas pessoas estão realmente a ajudar e não lhes interessa mostrar a cara.
Depois que tudo isso passar, podemos imaginar que algo mudou e que há um tipo diferente de luz no final do túnel. Sairemos dessa situação mais humanos, menos insensíveis, mais atentos aos que nos cercam? Afinal, pode ser que ao sairmos disso tudo, descubramos que estamos a viver num mundo em que a crise não seja mesmo uma crise. Quem sabe, talvez a gente descubra, que nunca estivemos separados, mesmo durante o estado de emergência.