Conto – Nem tudo é como vemos, quando vemos.

18/06/2020

Arlindo e Clara, o apelido de um conto leve, sobre o que se pode esconder debaixo de sentimentos que não entendemos ainda completamente. Muitas vezes o que vemos em nós, não é o que vêem em nós. Muitas vezes o que não é visto, pode ser o que temos de melhor.

Arlindo já fazia muito tempo não conhecia nada de amor. Um relacionamento para ele era como um sonho muito distante. Ele mesmo não entendia bem porque. Era inteligente, um exemplo de simpatia, com um coração maior que o mundo. Difícil imaginar alguém como ele não ter com quem dividir seus dias.

Tinha uma coisa que Arlindo não percebia, talvez porque vivia há tanto tempo com ele e que não lhe parecia importante. Uma coisa que superava todas as probabilidades. Arlindo era feio. Não era feio como uma pessoa com um olho mais caidinho, ou uma orelha de abano. Não. Arlindo era feio mesmo. Mesmo com toda sua simpatia, era difícil para ele ajudar as pessoas, e elas quase sempre resistiam à aproximação. 

Era um trabalhador dedicado. Acordava sempre muito cedo. Gostava de seus animais. Tinha uma pequena quinta, e um pomar sempre produzindo frutas. Tinha uma rotina que funcionava como  um relógio suíço. Raramente deixava falhar algum detalhe. 

Nas primeiras horas da manhã ele alimentava seus animais, dava milho para as galinhas, dava ração aos porcos, depois ia lidar e “conversar” com Adalberto, um de seus dois cavalos de carga. Na verdade de carga só pelo tipo, mas já fazia um bom tempo que Arlindo não exigia de seus cavalos puxar uma carroça. Ele agora tinha uma carrinha que dava conta do serviço.

Depois de todos alimentados, dava um passeio quase científico pelo pomar e finalmente, ia para a cozinha fazer o seu pequeno almoço. Durante o dia, dependendo do dia da semana, Arlindo ia para a cidade vender seus produtos. Tinha uma banquinha perto da praça principal. Sempre conseguia vender tudo, apesar da resistência dos fregueses em chegar até a sua banca, o que Arlindo não entendia porque. Com sua persistente simpatia e bondade, convencia seus fregueses e talvez isso isso fosse o segredo de seu sucesso.

Entre tantas rotinas, uma ele nunca deixava passar, e não importava se chovia ou se fazia muito Sol. Ele sempre caminhava aos fins de tarde pela praça. Por alguma razão, ele sentia um prazer enorme. Ouvia o ruído dos bichos nas árvores, um pouco do som das águas no chafariz alí pertinho. Ele era um homem prático, mas nesse momento se despia da pressa e calmamente saboreava cada passo na direção da travessia. Engraçado, porque na volta vinha a passos largos pelo mesmo caminho, e não se prendia tanto aos detalhes que o impressionaram na ida. Havia uma razão. Ele sempre se lembrava dos seus bichos em casa. Tinha de alimentá-los. Essa rotina ele nunca podia deixar de lado, de domingo a domingo, tudo acontecia da mesma forma.

Terminava essa etapa de seu dia e ia para dentro de casa preparar uma coisinha para comer. Nunca era demais, afinal, era só ele mesmo. Depois disso, fechava a casa e por volta de nove horas da noite ia para a cama. Geralmente demorava um pouco, mas depois de cair no sono era até de manhã.

Um certo dia, que se apresentou com um clima um tanto duvidoso, estava a dar o seu passeio pela praça, depois de ter fechado sua banca, e algo chamou sua atenção, coisa que não era normal, pois nada mudava na sua caminhada, mesmo depois tantos anos. Alguém com voz baixinha oferecia flores num tabuleiro apoiado num par de tijolos. Era Clara, uma linda rapariga. Cabelos morenos e cacheados, olhos grandes e vivos, com um tom entre cor de mel e castanho. Vestia-se com uma simplicidade quase improvisada com o que encontrou no seu guarda-roupa. Carregava um sorriso que deixava seus rosto iluminado como se fosse um dia claro e ensolarado, o que não era e já sabemos disso. A beleza de Clara era estonteante, talvez tanto quanto a “feiúra” do Arlindo. Em torno dela parecia que tudo se iluminava. Sua voz parecia uma sessão de hipnose. Arlindo quase parou, mas ficou sem graça. Afinal ela vendia flores e ele não tinha o que fazer com elas caso as comprasse. Mais uma vez o lado prático dele pesou nos seus pensamentos.

Ela vendia suas flores e eram vários tipos e para todas as intenções. Rosas, lírios, margaridas, para romance e decorar a sala. Ela oferecia, mas não tinha quem comprasse. Ela estava num ponto da praça que não passava quase ninguém. Aquilo chamou a atenção de Arlindo. O que fazia aquela mulher linda, vendendo flores? Porque eu nunca a vi antes? Arlindo passou tentando não olhar demais para ela, se bem que seus olhos se negassem a obedecer, e ela no entanto, não deu a menor atenção aos passos dele tão perto. E assim ele se foi. Tão chocado ficou que na volta passou por outro caminho, depois disso, voltou à sua rotina. Aquela que todo dia o controlava.

No dia seguinte, ele acordou, mais cedo. A imagem de Clara, que ele não sabia ainda que se chamava Clara, não lhe saía da cabeça. Aquilo ia tomando conta dos pensamentos. Ele não tinha muito o que fazer, deitava o milho para as galinhas com Clara na cabeça, por pouco não conseguia conversar com Adalberto, não conseguia raciocinar. Clara lhe tomara cada canto da mente.

Estava na hora de voltar à vida real. Carregou a carrinha e saiu para a cidade e montou sua banquinha. Como sempre, vendeu suas mercadorias, errou um troco aqui e outro alí. Realmente Clara tinha se apropriado de seus pensamentos. 

Que fique claro: ele não tinha ambição com relação a ela e por várias razões. Ele sabia de sua condição. Já se tinha acostumado a ela, mas não era burro e sua casa tinha alguns espelhos. Sua intriga vinha do facto de ser um homem com pouco o que pensar, e aquela mudança na sua rotina o fazia pensar, mais do que estava habituado. De qualquer forma, ele não via a hora de fazer sua caminhada. “Será que ela estaria lá?”. 

Não. Ele não tinha realmente nenhuma intenção, mas não podia resistir à atração que aquela visão lhe causara. Talvez apenas porque fosse um facto novo. Logo passaria. 

Finalmente o meio da tarde chegou. Tudo vendido, hora de fechar a banca e fazer sua caminhada atravessando a praça, que por sinal, era enorme. Para uma cidade pequena, do interior, era bem grande e bem cuidada. E lá foi Arlindo. Carregando apenas a si e sua impecável “feiúra”. Logo no começo do trajeto, havia um parquinho infantil. Muitas crianças fazendo um barulho alto onde se misturavam gritos de prazer pelas brincadeiras com berros por um ou outro tombo. Ele, uma vez ou outra tentava ajudar. As crianças tinham um carinho muito especial por ele. É como se a “feiúra” fosse invisível para aqueles olhos ainda pouco treinados para criticar qualquer coisa.

De longe, depois de algum tempo andando, ele avistou Clara. Meu Deus! Que coisa mais linda. Não conseguia tirar os olhos dela. Ele tentava. Não queria parecer inconveniente, mas seus olhos não lhe obedeciam de jeito nenhum. Passavam dois segundos e corriam para onde ela estava. Imediatamente outra parte de seu corpo passou a desobedecer. Dessa vez as pernas já não eram comandadas por ele, mas por ela. Sem que percebesse estava diante dela, em pé, sem palavras. Ela, impassível e apenas com o permanente sorriso, percebeu que ele queria algo, e perguntou, sem se dirigir diretamente a ele: “posso lhe oferecer flores?”. Pronto agora o cenário estava completo. A voz de Clara entrou pelos ouvidos de Arlindo como um favo de mel desce pela boca. Tinha uma afinação, um não sei o quê que tocava o coração sem passar por mais lugar nenhum. Só o facto de não olhar para ele o deixou um pouco estranho, mas ele sabia porque. E ela insistiu. E ele meio que resistente, saiu do transe. Isso não durou mais que um segundo, mas pareceu uma eternidade para ele. Sem saber o que fazer, respondeu que queria um ramo de lírios. Ela, prontamente, levou a mão a um vaso à direita e de forma quase geométrica e sem mover a cabeça, pegou um belo ramo de lírios brancos. Estavam lindos e viçosos. “1 Euro”, disse ela, já apontando as flores e a cabeça na direção dele. Ele enfiou a mão no bolso, tirou duas moedas de 50 cêntimos e deu na sua mão. Nesse momento ele pode ver a beleza dos olhos dela, mas algo o intrigou. Ela não olhava para ele. Ela na verdade não olhava para nada! Ele deixou as moedas na palma da mão dela e pegou as flores. 

Quando ele já ia virando o corpo para seguir sua caminhada, ela interpelou: “O senhor passou por aqui ontem, não?”. Ele prontamente voltou, com o corpo todo na direção dela e por uns milésimos de segundo ficou pensando no que diria. Claro que a resposta era clara, mas para ele naquele momento, era um exercício sobrehumano. “Sim”, respondeu. E com mais um pouquinho de esforço, ainda disse “Eu faço essa caminhada todos os dias, sempre”. 

Ela, em tom de quem precisava falar com alguém e se informar mais, explicou: “não passam muitas pessoas por aqui, mas seus passos me chamaram atenção. “Seu caminhar é bem diferente. Seguro”. Foi quando ele percebeu que ela olhava um pouquinho para o seu lado esquerdo. Para Arlindo isso era normal, afinal nem todo mundo gostava de olhá-lo por muito tempo, mas tinha algo diferente na forma como ela olhava para ele. Não demorou muito para ele perceber que ela não via. Clara era cega, algo que vinha desde o nascimento e nunca viu nada além das luzes sem formas que sua visão permitia. Ela conseguia saber se era dia, manhã tarde ou noite. Tinha desenvolvido a capacidade de interpretar os tons ao decorrer do dia e as noites.

Por alguma razão, Arlindo ficou de uma certa forma aliviado. Não estava olhando para o lado por repulsa, mas porque não tinha a precisão para reconhecer que Arlindo estava mais para a sua esquerda. Ela tentava seguir com a cabeça o som da voz de Arlindo, até conseguia com algum esforço, enquanto ele já buscava um apoio para sentar e tentar alongar aquela conversa. 

Ele não sabia como nem porquê, mas a rotina tinha ficado sem a menor importância agora. Tudo o que importava era estar por ali, falando com Clara. O minutos passaram, Clara não vendeu mais flores e Arlindo não foi a lugar nenhum. Muitos segundos se somaram e eles entoaram uma conversa que parecia não ter mais fim. Cada um contava, aos poucos, um pedaço de sua vida. Arlindo, orgulhoso de suas rotinas e ao mesmo tempo incomodado. Clara contava como foi parar naquela cidade e naquela praça. 

Os dias foram passando e os encontros foram se tornando conversa em toda a cidade, mas ninguém tinha coragem de contar para Clara sobre a “feiúra” de Arlindo, nem mesmo as crianças, que tendem, em seus momentos de ingenuidade a contar o que não é de sua conta. A verdade é que quanto mais eles falavam, mas percebiam o quanto tinham em comum. 

Não demorou muito para Arlindo oferecer a ela um espaço em sua banquinha, o que foi perfeito para os negócios de Clara. Para Arlindo, o negócio ia muito bem também. A beleza de Clara trazia mais fregueses que pelo encanto dela acabavam levando sempre alguma coisa, fosse uma rosa ou um quilo de abóbora, um antúrio ou uma peça de chouriça. 

Com o passar de muito pouco tempo, Clara foi morar com Arlindo na quinta. Estavam de facto juntos, como um casal. Não tinha como negar que eram um casal lindo. Vamos falar a verdade, se desconsiderar a “feiúra” do Arlindo, eram uma dupla belíssima. Ele a tratava como uma rainha e ela tinha por ele um carinho enorme e não deixava nada lhe faltar.

Agora era comum ver os dois fazendo as caminhadas ao fim da tarde. O Arlindo até voltou a usar o Adalberto na charrete, que ele arranjou todinha, não para que ele fosse um animal de carga, mas para que fizesse companhia aos dois.

Deixaram de lado a banquinha na rua e estabeleceram uma lojinha, toda arrumadinha, que se tornou praticamente uma sala de visitas, de tanta gente que circulava e ficava para conversar. E os meses passaram. Para ser prático, como gostava o Arlindo. Nove meses depois Clara deu à luz uma criança. A cidade toda, toda mesmo, ficou apreensiva. O que poderia resultar desta combinação? 

Filipinho, o filho dos dois, tem hoje cinco anos. É a criança mais linda que a cidade já viu, parece um anjo. Ah, e a propósito, tem a visão como a de uma águia.