
Corpo de Deus. Um feriado santo ou apenas uma festa?
11/06/2020
Passei minha infância e adolescência ouvindo a cada ano a cantoria das beatas velhas entoando: “a treze de maio, na cova da Iria!”. Esse cântico ecoava até com alguma emoção. Fui criado numa verdadeira aldeia portuguesa, no Rio de Janeiro, mas para mim as comemorações de Fátima eram os dias de ouvir os portugueses chorando de emoção. Para mim, essas datas não eram diferentes do Natal ou da Páscoa. Cresci e aquele canto continuava ecoando, “a treze de maio, na cova da Iria!”. Como alguns conselhos que recebemos ou sons que ouvimos em algum momento de nossas vidas, aquele cântico não parava. Eu não saberia o resto do hino, mas aquele pedaço me martelava sempre em algum momento.
Só para deixar claro para os menos esclarecidos, o Dia do Corpo de Deus é um feriado nacional que sempre cai sempre em uma segunda quinta-feira, após o Domingo de Pentecostes, o que acaba sendo entre os 21 de maio e 24 de junho.
Os anos passaram e Portugal virou uma realidade para mim e foi quando eu percebi, porque as coisas eram como na minha adolescência. Pouco depois de chegar, me senti quase numa filial do Vaticano. A força da religião católica e da fervorosidade aos santos, nesse caso todos eles aflora nas ruas. Tudo acontece ali. A música das bandas, que quase só existem para atender a essas comemorações, as roupas de festa, as cerimónias. Tudo faz com que Portugal seja uma nação onde a religião parece ser a base de tudo. Será?

Essa questão me acompanha há algum tempo. Será que Portugal é mesmo tão religioso assim? A religião nunca foi meu assunto predileto, mas não se pode ignorar quando uma coisa está tão em volta de você. Aí me pergunto. Será em que geração o fim dessa idolatria? Como tudo, a modernidade toma conta de outros assuntos, e a religião vai, aos poucos, ficando para trás. Não que isso seja uma coisa estranho, já que no mundo todo é uma coisa natural, mas num país que baseia boa parte de sua cultura na religião, isso tem um peso que precisa ser discutido. Veja por exemplo as grandiosidade das igrejas e a quantidade. O número de datas religiosas é outro ponto de atenção.
Tudo isso foi criado há séculos e assim permaneceu. Outras coisas foram demolidas e trocadas, mas as igrejas se multiplicaram e foram resistindo, mas será que os seguidores ainda são os mesmo?
Com exceção de Israel, onde o percentual de jovens alheios à religião é de apenas 1%, nos demais países, a quantidade é enorme. Varia entre 80% e 40%. Nesse caso não estamos lidando somente com a religião católica, mas com todas, de acordo com os países. O que estamos a falar aqui é o quanto as gerações mais novas se apoiam na fé religiosa no seu quotidiano. Nesse ponto Portugal ainda é o líder em crença religiosa nas novas gerações. Mas quando se olham para os números, já se pode perceber um decréscimo na crença e na frequência religiosa das gerações mais jovens.
Por quê será?
É muito comum, como a própria doutrina prega, que a fé é a base para todas as crenças. Mas o mundo foi se informatizando, se modernizando e adquirindo novos hábitos. Novas distrações foram criadas. Veio o rádio, a TV, as liberdades de comportamento, a globalização e por último a internet. Essa, por enquanto, a fronteira mais recente, mas não sabemos se é a última. Tudo isso fez com que os jovens tivessem algo mais com que dividir as atenções. Não bastasse, veio a informação, também culpa da internet. Muitos mitos foram sendo derrubados. Outra razão que se tornou comum no abandono dos fiéis, foi a desilusão com as instituições. Em Portugal, a religião católica acabou revelando lados não condizentes com a doutrina, o que afastou os jovens das igrejas. Não exatamente da fé, pois há ainda uma grande quantidade de jovens que reza com frequência, mas já não são adeptos de ir à igreja. Não fosse pelos pais que ainda impõem sua companhia, talvez esse número de ausências fosse ainda maior.

Quantos somos?
Num país que tinha 100% de católicos fervorosos, o que se pode medir pela frequência nas grandes romarias a Fátima, Viana do Castelo, Lamego e as festas de São João e Santo António, agora o número cai para 80% e continua descendo. Isso, é um sinal de que algo está a acontecer, nesse caso é o rumo natural das coisas. Os jovens têm outras coisas com que se preocupar. De repente as festas deixaram de ser baseadas na fé que se comemora, mas no encontro de amigos, quase um carnaval religioso. Uma oportunidade de se ocupar em feriados, sem que a crença esteja a promover o evento.
Não saberia dizer em números, mas certamente, percentualmente, estamos a minguar a cada dia. Podemos afirmar que Portugal viveu seu momento religioso mais fervoroso em meados do século 20, um pouco porque o regime político deixava pouco em que se apoiar, e a religião era um ponto de encontro entre pessoas e a forma de se viver em comunidade sem levantar suspeitas, em parte porque a tecnologia atrasada da época ajudava a não distrair tanto.

A mostra de que as coisas mudaram está na quantidade de entidades religiosas no país, depois de 2001, quando foi celebrada a Lei da Liberdade Religiosa. Hoje são mais de 80 entidades registadas. Número quase 80 vezes maior. Faça as contas.
Em parte as religiões importadas de todo o mundo, que aos poucos foram se firmando devido aos imigrantes, que preferem manter-se em suas crenças originais e mais tarde o poder dos evangélicos, que em todo o mundo foram angariando fiéis.
A democracia e as políticas de imigração também são responsáveis pela mudança de paradigmas. Com ela, ficou fácil às religiões se implantarem e era natural que dividissem suas atenções com o povo local, nesse caso, os católicos portugueses, que naturalmente subtraem as fileiras da igreja católica tradicional.

Muito dessa tradição depende agora de como os pais foram criados pelos seus pais e o quanto os avós passam para seus netos, em uma comunidade com cada vez mais fragilidade nas relações familiares. Os valores transmitidos dentro das famílias podem ser a chave, mas tudo indica que o processo não reverte mais. Os jovens da década de 80 já não cuidam de seus filhos como cuidaram seus pais e os pais da década de 2020, certamente não acreditam mais nos mesmos valores que acreditavam seus pais.
A força da comunicação
O que a pandemia veio mostrar, é que nem a força da fé supera o medo de morrer ou sofrer de uma doença. A prova está na quantidade de festas populares religiosas e romarias canceladas, sem nenhum protesto. Sabemos que no ano que vem, tudo deverá voltar, mas possivelmente já estará claro que serão apenas festas e sem uma consciência religiosa, que deve começar pelas entidades e pela modernização da Igreja e seus representantes. Tudo é um trabalho de marketing e não podemos negar que religião é dependente de marketing. Tente levar fiéis ao topo da montanha sem dizer o que encontrarão lá. É melhor que a mensagem seja clara, pois nos dias de hoje, é importante que o santo valha a pena, pois a concorrência é enorme.
O que fica afinal
Portugal ainda deverá perdurar por muito tempo como um país essencialmente católico apostólico romano, sem dúvida. Mas devemos estar certos de que o tempo nos fará perceber que cada vez mais as festas e feriados religiosos, vão passar a ser apenas datas para se descansar do trabalho e para ir para a rua festejar um santo o qual já não sabemos bem de onde surgiu. No meu caso, “a treze de maio da cova da Iria” vai continuar ecoando por muito tempo na minha cabeça e eu sei que se trata de Nossa Senhora de Fátima. Não me perguntem dos outros santos pois não tenho a menor ideia.